Pensamento edificante do dia:

Pensamento edificante do dia: "O desafio é encontrar Vida em meio ao ambiente hostil que é a vida."

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Futebolero de Ravel

Adoro futebol.

Sei que homem macho não diz "adoro", mas eu adoro futebol, fazer o quê? São aquelas exceções que a gente é obrigado a dar o braço a torcer.

Desde que sou bem pequeno eu jogo futebol. Quando bem novo, eu era muito ruim, então eu jogava no gol, como sói acontecer com quem é muito ruim.
Eu digo "era", assim, no passado, porque depois, com o tempo, aprendi a dar cavadinha e bater de trivela na bola, o que não me fez nenhum craque, mas foi o suficiente para sair do gol.

Quem muito me viu jogar no gol foi o Ravel, que é um dos amigos mais antigos que tenho sobre este chão. Aí você se pergunta: como que eu consigo ser amigo de um músico nascido no século XIX?
Não, o meu amigo não é aquele maestro francês, compositor do famoso "Bolero de Ravel". Que eu saiba, meu amigo nunca compôs nada e nem nasceu na França, muito menos no século XIX. É outro Ravel.

Estudei com o Ravel - que não é músico e é brasileiro - desde a 3ª série. E ele tinha uma coisa muito curiosa: era a única criança que eu havia visto que tinha os cabelos brancos, tanto que o apelido dele era "Vovô". Na verdade, apenas algumas partes do cabelo dele eram brancas. Eu achava aquilo a coisa mais bacana do mundo, deixava ele diferente de todo mundo.
Mas o Ravel brasileiro não gostava de ter os cabelos brancos.
Que côsa.

O Ravel, além de não compôr músicas e não nascer na França no século XIX, nunca fez gol.
Já joguei milhares de bilhares de vezes com o Ravel, e ele nunca faz gol. Não que ele seja ruim, muito pelo contrário; joga bem, o Ravel. É zagueiro marcador, que toca a bola quando tem que tocar e mete a bica pra fora quando tem que bicar, que é isso que zagueiro tem que fazer.
Quando o atacante é muito habilidoso e ligeiro, o Ravel vai lá e faz a falta logo que é para não se complicar. Mas o Ravel não é traiçoeiro, ele sempre faz a falta na lealdade, só para parar a jogada, nunca para machucar ninguém.
Mas, de verdade, o Ravel não se entende com as redes. O Ravel entra e sai de campo e nada de gol.

Até que, um dia, nosso time estava jogando e a gente estava massacrando o outro time. A bola não saia daquele pedaço entre a intermediária e a linha de fundo do campo adversário. Era só pressão, mas nada de gol. O jogo se desenhava para um zero a zero dramático, um zero a zero injusto para nós e heroico para eles!
Então, deu uma falta do lado esquerdo do nosso ataque, bem pertinho da área, e lá fui eu bater.
Olhei bem para área e aquele amontoado de gente lá dentro. Não havia como escolher para quem tocar, mas vi o Ravel entrando lá do outro lado da área, numa zona que não tinha muita gente.
Dei passo e meio para trás, corri para a bola e bati nela com o lado de dentro do pé. A bola saiu suave e curvilínea, e lá ia ela encontrar o Ravel no meio da área.

Mas ela saiu alta, deu tempo de todo mundo ver que a bola ia cair por lá e começou a juntar gente na volta do Ravel. E juntar mais e mais e mais, até que, no meio do caminho, a bola nem era mais pro Ravel, mas para qualquer um que se intrometesse no caminho.
Pois e não é que, mesmo marcado, o Ravel se esgueirou daqui e dali e poft, conseguiu meter a cabeça na bola no meio daquela gentarada. Mas cabeceou sem jeito. Não pegou em cheio na bola e ela saiu para cima e sem força.
A bola começou a subir e todo mundo começou a se ajeitar de novo. Os zagueiros todos se preparando para afastar a bola de qualquer maneira, os atacantes querendo empurrar ela de qualquer jeito para goleira e o goleiro tentando agarrar ela de forma sólida e segura. E lá vinha ela... devagar... mansa... lenta como o compasso do bolero de Ravel.
E a bola ia subindo e vindo. Só que ela subiu mais do que os zagueiros e os atacantes e o goleiro esperavam. Desenhou um arco sobre a área e, bem devagarinho, picou do outro lado da risca e foi dormir lá no fundo da rede.
Gol!
Gol do Ravel!
Olhei logo para ver o que que o Ravel ia fazer agora?

Pois o Ravel nem se afetou muito. Saiu comemorando com ânimo, mas discretamente, feito quem faz gol todos os dias, dum jeito que combina muito com a personalidade do Ravel.
Gol do Ravel...
O maior gol que eu já vi.