Pensamento edificante do dia:

Pensamento edificante do dia: "O desafio é encontrar Vida em meio ao ambiente hostil que é a vida."

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Retrato escrito

cada palavra é um horizonte
paira ao longe e sugere
que há algo além da linha
cada estrela no céu é uma ideia
brilhando distante e tênue
em meio à escuridão
cada promessa é vidro
que a quebra estilhaça
em cacos afiados

os risos nunca ecoam
as saudades nunca calam
a tristeza
geme uma melodia

eu vou me erguer como o sol se ergue
o que é sombra vai se iluminar
eu vou para oeste como o sol se vai
levar calor por onde andar
por fim cair, como o sol também cai
e o que era dia irá se apagar

nos meus rastros ficarão estrelas
no horizonte negro se verá silêncio
nos retratos restarão lâminas
os risos nunca ecoam

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Os anos

Hoje eu completo 30 anos.*
Que você tem a ver com isso? Pois é, nada.
Ou talvez sim, mas quem sente a importância disso sou eu, não você. O que você tem a ver com meus 30 anos é algo que, infelizmente, só eu posso aproveitar.

30 anos.
Não é um aniversário diferente dos outros, mas também não é uma coisa qualquer. Talvez pelo impacto de ser um número redondo, não sei.

Lembro de quando fiz 10 anos. Lembro de ter tido uma breve reflexão a respeito daquele grande acontecimento: percebi que aquela era minha primeira idade com dois algarismos. Verdade! Eu realmente pensei nisso. Quando uma única vela não era suficiente a materializar os dígitos de minha idade em cima do bolo, aquilo me causou uma reflexão interior, um pensamento dirigido a mim mesmo com certa curiosidade sobre o tempo. Legal. Bonito. Não sei porque lembro muito bem deste pensamento.
Era um menino tímido. A forma que encontrei de interagir com os outros era sendo um garoto engraçado, piadista. Talvez isso passasse a imagem de que sou alguém alto astral, animado ou, talvez, até mesmo bobo e ingênuo.
Mas não me sentia assim, de maneira nenhuma.
Era (talvez ainda seja) meio chato.
Não gostava de festas ou outros eventos. Não aceitava que beber, fumar ou se drogar fosse algum tipo de vantagem. Nunca me achei bonito e acreditava ter a compleição magra, num aspecto frágil, em contraste com a ideia de que meninos deveriam ser fortes. Tais dilemas não combinavam com minha índole humorada, o que me causava conflitos internos aborrecedores e desgastantes, de forma que não sei se isso me ajudou a atravessar a adolescência sem maiores transtornos ou simplesmente impediu-me de enfrentar intensamente minhas indignações e moldar um espírito mais forte.

Agora, três décadas já se passaram e eu ainda me sinto um menino.
Não, não no sentido bom da coisa. Me sinto um menino porque ainda me pego sonhando com um futuro em que serei muito mais realizado, sucedido e satisfeito. A expectativa de que algo surpreendente e interessante ainda vai acontecer não se atenuou em nenhum instante de minha existência. Uma permanente perspectiva de que ainda vou me tornar aquilo que vou ser.
Nem mesmo fisicamente vejo a minha figura como imagino que deveria ser a de um homem. Tenho um aspecto adolescente. Magro, desajeitado, que ri fácil mas não sabe por quê.
A experiência que eu deveria ter acumulado não me ajudou a ter nenhum método, ou pelo menos a mais vaga noção, de quando e como fazer a coisa certa.
Ainda não conheço os atalhos para viver a vida com mais sabedoria. É tudo tão obscuro quanto sempre foi.

Apenas minha incondicional paixão por jogar futebol atravessou intacta todas as fases da minha vida.

Meu grande sonho é escrever um livro, um dia. Um texto com intensidade, que exponha de forma crua e densa todos os tormentos, esperanças, dúvidas e lucidez que lutam dentro de mim e que seriam capazes tanto de me libertar como de me expor ao ridículo. Desejo um texto com autenticidade, com força. Almejo a capacidade de escrever com as entranhas, como um O Estrangeiro, Cem Anos de Solidão, Nada de Novo no Front, O Processo ou O Animal Agonizante.
Mas esse é um desejo que custaria a realizar-se e temo que eu não teria capacidade de encontrar o caminho para uma escrita de tal envergadura. A imensa probabilidade de que tal façanha nunca se concretize me assusta e faz sentir-me pequeno.

Em contrapartida, ironicamente, às vezes tenho a impressão que já vivi tantas coisas que, em alguns dias, é possível enxergar uma realidade nítida entre tantas verdades esmaecidas. Nuances suaves, mas marcantes, revelam que é tudo um transe sem muito sentido, que haveria uma forma bem mais interessante e inteligente de tocar as coisas em frente... e, ao mesmo tempo, é apenas uma impressão. Qualquer coisa que você possa dizer não é nada que qualquer um já não tenha percebido. A vida é fria e errática porque é simplesmente inevitável que o mundo siga seu curso, de uma maneira ou de outra.

A ilusão é falsa o suficiente pra ninguém levar tão a sério quando alguém aponta, mas verdadeira o bastante pra convencer o olhar distraído.
No fim, a gente se conforma. E só.

No curso do direito estuda-se essa figura abstrata: o homem médio. As regras da sociedade devem ser interpretadas através da perspectiva que o homem médio as perceberia em seu modo de vida. Deve-se observar como, no mais das vezes, a grande massa reiteradamente se comporta para identificar a reprovabilidade de uma conduta. Mas ninguém sabe dizer objetivamente quem é o homem médio.
O homem médio é, pois, um indivíduo economicamente ativo e socialmente inserido, que enfrenta certas dificuldades mas está razoavelmente afastado do desespero. Ele estuda por anos, procura um bom trabalho, economiza pra comprar um carro e deseja ter uma moradia própria. O homem médio se preocupa com a estabilidade financeira e se bota a planejar anos a fio buscando melhorar sua situação em um futuro próximo que insiste em não chegar. Ele aprecia manifestações artísticas e culturais populares, algumas poucas de arrojo intelectual e tem uma vaga noção de produções alternativas que despontam em algum movimento social que se destaca sazonalmente. Planeja as férias, viaja a intervalos regulares, come comida industrializada intercalada com breves períodos de preocupação em ter uma dieta mais saudável. Questiona os valores morais da sociedade em que vive, em que pese os tenha absorvido e os reproduza com frequência suficiente pra tornar seu discurso ocasionalmente contraditório às suas ações. Frequentemente se sente julgado levianamente e, portanto, julga os outros vigorosamente.
Todo esse conjunto de resignações causam pequenas crises filosóficas que perturbam o homem médio de tempos em tempos, deixando-o reflexivo e consternado com a situação humana. Estas reflexões se somam mas não se aprofundam e ele segue em frente sem encontrar soluções satisfatórias, com uma cabeça cada vez mais cheia de pensamentos e conflitos e nenhum escape.
O despertador tocou. A sinaleira abriu. O expediente encerrou.
Pois bem, a identidade se revela: sou eu. Eu sou o homem médio. Eu e meu pacato cotidiano.
Deveria ser transportado para uma sala de aula e estudado por universitários curiosos, ávidos por entender como o homem médio faz suas bagaçadas por aí e consegue acreditar que está tudo certo, tudo bem. Como ele consegue se perceber dentro de um sistema que lhe condiciona, constrange, extenua e revolta e, ainda assim, continua obedecendo e sustentando entre resmungos inconformados?
Infelizmente, não sei, pessoal.
O homem médio não sabe. Curiosamente essa é, também, uma característica marcante do homem médio.

As condições em que cresci e me criei me permitiram ser uma pessoa comum, preocupada com uma rotina regular, sem grandes sobressaltos, sem dramas perturbadores, sem grandes privações. E esse é exatamente o motivo do meu mais estúpido transtorno. Como não ficar indignado de perceber que seus maiores dilemas são típicos de qualquer imbecil?

Onde encontrar espaço para genialidade nisso? Como a criatividade germinaria num cotidiano assim? Como esperar encontrar uma abordagem mais interessante da vida se as mesmas condições se assentam cada vez mais firmes? Como ter uma alma? Como ter um coração pulsante de sangue quente? Como expelir a mais ácida, honesta, vívida e encantadora sinceridade? Como aliviar as dores de ser inexpressivo? Como saber qualquer coisa entre tantas contradições?

Escrevi esse texto porque encontrei, em um caderno, rabiscos de quando era mais jovem. Não é um texto elaborado, mas me surpreendeu que também não tenha sido excessivamente ingênuo. Apesar da perspectiva adolescente, revela uma inquietação até bem pensada:

Com muitos e tímidos passos acumulei histórias. A cada novo dia, nos permitimos sonhar com tantas novas possibilidades no destino que não espanta que todo ser humano se veja pressionado a ter a melhor jornada em todos os instantes. Confiamos em nossa espontaneidade e subestimamos os desapontamentos, o que torna as vontades, opiniões e ações muito mais rigorosas e definitivas, e os erros, fracassos e equívocos muito mais severos e indigestos. Saber que as marcas do passado não mudarão nunca mais e que a chance de buscar uma vez mais a felicidade está sempre no momento à frente ora nos move, ora paralisa; ora nos estimula, ora nos cansa. A cada segundo, algo se torna nossa história, poemas, desenhos ou rabiscos indignados.
Viver é caminhar sobre uma imensa linha em branco.

Que se dane.
Afinal, meus prazeres e meus transtornos serão apenas meus. Apagarei a chama de mais um ano, e a dor e alegria dessa passagem se encerrarão por trás de meus olhos.
Chega de palavras.
Apenas sinta o acelerar de meu coração.
Já tenho trinta anos.

Então? Que tal estou?

*Texto originalmente escrito em 20/03/2016

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Futebolero de Ravel

Adoro futebol.

Sei que homem macho não diz "adoro", mas eu adoro futebol, fazer o quê? São aquelas exceções que a gente é obrigado a dar o braço a torcer.

Desde que sou bem pequeno eu jogo futebol. Quando bem novo, eu era muito ruim, então eu jogava no gol, como sói acontecer com quem é muito ruim.
Eu digo "era", assim, no passado, porque depois, com o tempo, aprendi a dar cavadinha e bater de trivela na bola, o que não me fez nenhum craque, mas foi o suficiente para sair do gol.

Quem muito me viu jogar no gol foi o Ravel, que é um dos amigos mais antigos que tenho sobre este chão. Aí você se pergunta: como que eu consigo ser amigo de um músico nascido no século XIX?
Não, o meu amigo não é aquele maestro francês, compositor do famoso "Bolero de Ravel". Que eu saiba, meu amigo nunca compôs nada e nem nasceu na França, muito menos no século XIX. É outro Ravel.

Estudei com o Ravel - que não é músico e é brasileiro - desde a 3ª série. E ele tinha uma coisa muito curiosa: era a única criança que eu havia visto que tinha os cabelos brancos, tanto que o apelido dele era "Vovô". Na verdade, apenas algumas partes do cabelo dele eram brancas. Eu achava aquilo a coisa mais bacana do mundo, deixava ele diferente de todo mundo.
Mas o Ravel brasileiro não gostava de ter os cabelos brancos.
Que côsa.

O Ravel, além de não compôr músicas e não nascer na França no século XIX, nunca fez gol.
Já joguei milhares de bilhares de vezes com o Ravel, e ele nunca faz gol. Não que ele seja ruim, muito pelo contrário; joga bem, o Ravel. É zagueiro marcador, que toca a bola quando tem que tocar e mete a bica pra fora quando tem que bicar, que é isso que zagueiro tem que fazer.
Quando o atacante é muito habilidoso e ligeiro, o Ravel vai lá e faz a falta logo que é para não se complicar. Mas o Ravel não é traiçoeiro, ele sempre faz a falta na lealdade, só para parar a jogada, nunca para machucar ninguém.
Mas, de verdade, o Ravel não se entende com as redes. O Ravel entra e sai de campo e nada de gol.

Até que, um dia, nosso time estava jogando e a gente estava massacrando o outro time. A bola não saia daquele pedaço entre a intermediária e a linha de fundo do campo adversário. Era só pressão, mas nada de gol. O jogo se desenhava para um zero a zero dramático, um zero a zero injusto para nós e heroico para eles!
Então, deu uma falta do lado esquerdo do nosso ataque, bem pertinho da área, e lá fui eu bater.
Olhei bem para área e aquele amontoado de gente lá dentro. Não havia como escolher para quem tocar, mas vi o Ravel entrando lá do outro lado da área, numa zona que não tinha muita gente.
Dei passo e meio para trás, corri para a bola e bati nela com o lado de dentro do pé. A bola saiu suave e curvilínea, e lá ia ela encontrar o Ravel no meio da área.

Mas ela saiu alta, deu tempo de todo mundo ver que a bola ia cair por lá e começou a juntar gente na volta do Ravel. E juntar mais e mais e mais, até que, no meio do caminho, a bola nem era mais pro Ravel, mas para qualquer um que se intrometesse no caminho.
Pois e não é que, mesmo marcado, o Ravel se esgueirou daqui e dali e poft, conseguiu meter a cabeça na bola no meio daquela gentarada. Mas cabeceou sem jeito. Não pegou em cheio na bola e ela saiu para cima e sem força.
A bola começou a subir e todo mundo começou a se ajeitar de novo. Os zagueiros todos se preparando para afastar a bola de qualquer maneira, os atacantes querendo empurrar ela de qualquer jeito para goleira e o goleiro tentando agarrar ela de forma sólida e segura. E lá vinha ela... devagar... mansa... lenta como o compasso do bolero de Ravel.
E a bola ia subindo e vindo. Só que ela subiu mais do que os zagueiros e os atacantes e o goleiro esperavam. Desenhou um arco sobre a área e, bem devagarinho, picou do outro lado da risca e foi dormir lá no fundo da rede.
Gol!
Gol do Ravel!
Olhei logo para ver o que o Ravel ia fazer agora?

Pois o Ravel nem se afetou muito. Saiu comemorando com ânimo, mas discretamente, feito quem faz gol todos os dias, dum jeito que combina muito com a personalidade do Ravel.
Gol do Ravel...
O maior gol que eu já vi.