Pensamento edificante do dia:

Pensamento edificante do dia: "Inventar as palavras foi o jogo mais desafiador que a humanidade já concebeu, onde o objetivo é tentar dizer, com as peças disponíveis, o que gostaríamos que as outras pessoas soubessem"

domingo, 14 de abril de 2024

Cais

Ele despediu-se dela, que embarcou em um carro com uma lágrima pingente no queixo. Ela não disse se voltaria, mas ele, paralisado na calçada com os braços abandonados rente ao corpo, prometeu que a esperaria.

Mas o tempo foi passando e ela não voltava.

Algumas vezes ele tinha certeza que a chegada dela era eminente. Acordava feliz, se perfumava, ensaiava o que ia dizer para recebê-la com carinho e criatividade. Sorria e cumprimentava as pessoas na rua, se preparando para o momento de desfrutar um abraço caloroso e encerrar de uma vez por todas aquela saudade. Ficava olhando para a entrada de casa a cada pequeno barulho do lado de fora que sugerisse que alguém se aproximava. Às vezes entreabria a porta e espiava o corredor, tentando descobrir porque demorava tanto em bater. Evitava sair de casa para qualquer compromisso que pudesse causar algum desencontro com a chegada dela. O cômodo era invadido de luz, que aos poucos ia cedendo para a penumbra, enquanto ele adormecia no sofá com chocolates no colo.

Em outros dias, ele mal levantava da cama, obcecado com a ideia de que eles nunca mais se veriam. A essa altura, ela já devia ter o esquecido. Foi tudo uma página colorida do passado que desbotou, e ele suspeita que esteja se enganando. O que houve entre eles não fora como ele recordava. Talvez algumas coisas sequer tenham acontecido. Se aconteceram, ela não vivenciara o momento com a mesma percepção que ele e, por isso, não fazia nenhum sentido ela voltar. Ele chorava baixinho para os vizinhos não ouvirem. Andava pela rua com o rosto avermelhado, os olhos baixados para a calçada, a testa enrugada, o passo letárgico como de uma assombração. Não respondia aos cumprimentos e demorava a perceber que alguém falava com ele. Em casa, a porta parecia feita de cimento e não haveria força no mundo que seria capaz de abri-la para alguém entrar.

Os dias iam formando semanas, que viraram meses, que somavam anos e ele permanecia olhando para a porta. Os cabelos foram embranquecendo, a pele vincando, as veias traçando caminhos azulados em suas mãos. Observava as sombras oscilando pelo vão inferior da porta, esperando que alguma permanecesse e a maçaneta girasse.

Alguns dias sorria e acreditava, outros perambulava cabisbaixo e surdo. Os vizinhos e colegas passaram a achar que era apenas um velhinho meio louco, que falava reiteradamente sobre o retorno de uma companheira especial que nunca ninguém viu e não se sabia nada a respeito. Muitas vezes, ele contava sobre ela com a voz meio apagada pela idade, sem perceber que ninguém estava escutando. As pessoas concluíam que ele era apenas um senhor que falava sozinho, caminhava devagar e parecia solitário.

Os meninos da vizinhança tocavam seu interfone e saíam correndo, só por molecagem, sem saber que, do lado de dentro, ele passaria semanas sem dormir, imaginando que seu andar lento fez ele demorar a atender e ela desistiu de esperar. Ficava repassando o pensamento de que aquele poderia ter sido o dia do reencontro, de tocar mais uma vez a mão dela e dizer quanta falta ela fez.

Às vezes sugeriam que ela pudesse ter morrido e, por isso, havia aquele total silêncio. Mas ele tinha certeza que, se fosse verdade, a energia no mundo se alteraria e ele também morreria logo em seguida.

Um dia, após descer as escadas com dificuldade, conferiu o correio e viu que recebera uma carta. Permaneceu um instante sem se mover. Recolheu o envelope com os dedos trêmulos, subiu vagarosamente os degraus, sentou-se cerimoniosamente à mesa e descolou com cuidado as pontas do embrulho. Tirou um pequeno papel de dentro, que, em uma caligrafia cursiva redonda e bem desenhada, dizia:

"Me perdoe".

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Tintas

as folhas do meu caderno escondem
as palavras que eu queria pintar no seu muro
encher tua janela de cores sem assinar meu nome
sem notar que você me percebe
andar desatento com o peito respingado de tintas

meus desenhos eram tons pastéis opacos
até eu sentir a palheta irisada
no teu cheiro de pecã
que rabiscou traços nítidos
onde antes eu preenchia sombras

seus dedos enlaçados aos meus
me aquecem com teu laranja fogo
de pôr do sol

tua voz ondula e me dança
marcando o compasso do pincel
que rege na tela
as contornos que teu riso tem em mim

a curva dos teus olhos são um feitiço
riscos suaves em forma de gota
pingos de ágata negra no papel
que brilham como um lago sob a noite

as folhas do meu caderno escondem de ti
as tintas do teu pincel revelam em mim
os muros seguem calados
mas em meu peito você fez seu godê
teu cheiro
teus dedos
tua voz
teus olhos

sábado, 12 de agosto de 2023

Papel amarelado de palavras desgastadas

Sonhei que você havia morrido. Acho que nunca me senti tão horrorizado em toda minha vida. O ar se cimentou em minha garganta e, mesmo quando acordei num fôlego e lentamente percebi que tudo havia sido um sonho, ainda havia uma sombra em meu alívio.
Confesso que, algumas vezes, imaginei como seria a vida se você morresse. Todos os momentos que você me visse sozinho seria capaz de dizer exatamente quais foram as vezes em que pensei nisso. Meus olhos marejam e não sou capaz de me livrar das minhas ideias sem sacudir a cabeça e bufar. Meu rosto se desfigura, manchado por um gosto salobro.
Cada uma das vezes que esse pensamento me ocorreu, mesmo as de breve passagem, me deu vontade de que uma coincidência fizesse você aparecer. Eu gostaria de estar vulnerável nas vezes que falei com você, para poder ser espontâneo e esquecer de levantar a defesa das aparências. Porque é isso que aconteceria se eu conseguisse te dizer o que você significa para mim. Eu ficaria vulnerável. Indefeso de uma maneira constrangedora.
Mas é difícil traduzir algo assim em palavras. Por isso escrevo esses poemas esculhambados, esses "eu te amo" protocolares que parecem anúncio de número de bingo. Apesar de não faltar honestidade, falta essência. Dizer de maneira limpa o que você causa em mim seria abrir e expor a membrana mais sensível, em que qualquer manuseio equivocado me despedaçaria. E é dolorido parecer inteiro aos olhos de quem te vê de fora mas estar despedaçado. Dolorido a ponto de se encolher na cama, de te fazer deixar de entender por que os dias nascem, de ter uma imaginação febril te torturando com os arrependimentos mais insuportáveis, é dizer coisas que não começam e nem terminam e te tornam incompreendido, é transformar-se em um estorvo que ninguém é capaz de se livrar. Então me escondo na minha cautela, pois é preciso dizer apenas para a pessoa que temos certeza que é aquela que se dedica a nos cuidar. Uma certeza que nunca vem.
Se fosse possível dizer de verdade o que preciso dizer, eu teria de conseguir mostrar como cada gesto seria exaustivo na sua ausência, como seria visível nos meus olhos a espiral turva em meus pensamentos e como eu nunca mais daria um sorriso verdadeiro. Teria de dizer o quanto eu lutaria para dar sentido a cada pequena palavra que eu dissesse pra falar sobre você e, mesmo assim, nenhuma frase teria mais nenhum significado, e isso me faria chorar.

Considero ainda que, mesmo imaginando, não é possível conceber a real dimensão de como seria se, de fato, acontecesse. Quando meus pelos se arrepiam e me vejo enredado nestes pensamentos, sei que isso não é nada mais que uma fração do que se passaria comigo se, um dia, você não estivesse mais aqui. Em meu pesadelo, eu não consigo te salvar. Fico torcendo para que você corra algum perigo e eu possa ser a pessoa que te resgata, cometendo bravuras por você, mas tudo acontece e eu fico impotente. Minhas pernas se movem com lentidão e algo me impede de esconder o rosto para não enxergar. Não consigo entender tudo o que se passa, mas sei que você está sumindo e eu não posso remover seu tormento e nem aliviar seu medo. Não posso te aconchegar e te confortar. Fico imobilizado em gestos pesados, atolado em uma sensação de ser tudo minha culpa. Meu desejo besta de ser heroico e curar as suas dores te pôs em um perigo desnecessário, e torna-se apenas um grito rouco, como uma navalha, de quem não tem nada a fazer além de aceitar.

Não quero que você se sinta responsável por esses meus pesadelos. Sei que coisas assim não devem ser ditas nunca a alguém que infla os pulmões no tráfego da cidade, que cerra os olhos contra as cores que o sol espalha pelas coisas, que se veste todas as manhãs para despir-se novamente todas as noites. Então, eu nunca contei as coisas que te diria se você morresse, porque você ainda vive. Não conto porque te assustariam. Eu sei que assustariam porque me assustam.
Pensar em você me faz perceber as coisas que dão sentido para minha vida, e qualquer coisa que dê sentido para uma força tão avassaladora quanto o frágil fio que mantém alguém vivo só pode ser assustador.

Sonhei, portanto, que você havia morrido, e foi tão real que acordei como se eu mesmo não existisse mais. Foi pouco a pouco que lembrei como eu devia abrir os olhos, mover um braço e depois outro, me erguer sobre as pernas e seguir desempenhando os movimentos que representam que estou vivo. Até que me distraio e logo estou fazendo tudo automaticamente, sem lembrar de pensar em você. Essas são as horas que passam voando e não deixam nenhuma marca. Horas em que, se alguém me parasse e falasse comigo, sequer perceberia o quanto eu me importo. Eu mesmo acabo agindo como se tudo tivesse ficado para trás. É só quando sento olhando para o fundo da xícara em minhas mãos, marcada de frisos úmidos do café que terminei de tomar, é que volto a ser eu mesmo e lembro como eu nunca consigo dizer o que gostaria que você soubesse.

Até comecei a escrever uma carta, mas errei e tive de começar de novo, e a nova carta ficou manchada porque apoio a mão por cima da linha de tinta ainda fresca que acabei de escrever, e acabei de me arrepender de ter escrito com tanta nudez, com medo de me entregar tão completamente em suas mãos. Depois fui postar mas eu nunca vou nos Correios. Então o papel amarelou e as palavras se apagaram.

Foi quando eu quis que uma coincidência fizesse você aparecer.