Pensamento edificante do dia:

Pensamento edificante do dia: "O desafio é encontrar Vida em meio ao ambiente hostil que é a vida."

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Os anos

Hoje eu completo 30 anos.*
Que você tem a ver com isso? Pois é, nada.
Ou talvez sim, mas quem sente a importância disso sou eu, não você. O que você tem a ver com meus 30 anos é algo que, infelizmente, só eu posso aproveitar.

30 anos.
Não é um aniversário diferente dos outros, mas também não é uma coisa qualquer. Talvez pelo impacto de ser um número redondo, não sei.

Lembro de quando fiz 10 anos. Lembro de ter tido uma breve reflexão a respeito daquele grande acontecimento: percebi que aquela era minha primeira idade com dois algarismos. Verdade! Eu realmente pensei nisso. Quando uma única vela não era suficiente a materializar os dígitos de minha idade em cima do bolo, aquilo me causou uma reflexão interior, um pensamento dirigido a mim mesmo com certa curiosidade sobre o tempo. Legal. Bonito. Não sei porque lembro muito bem deste pensamento.
Era um menino tímido. A forma que encontrei de interagir com os outros era sendo um garoto engraçado, piadista. Talvez isso passasse a imagem de que sou alguém alto astral, animado ou, talvez, até mesmo bobo e ingênuo.
Mas não me sentia assim, de maneira nenhuma.
Era (talvez ainda seja) meio chato.
Não gostava de festas ou outros eventos. Não aceitava que beber, fumar ou se drogar fosse algum tipo de vantagem. Nunca me achei bonito e acreditava ter a compleição magra, num aspecto frágil, em contraste com a ideia de que meninos deveriam ser fortes. Tais dilemas não combinavam com minha índole humorada, o que me causava conflitos internos aborrecedores e desgastantes, de forma que não sei se isso me ajudou a atravessar a adolescência sem maiores transtornos ou simplesmente impediu-me de enfrentar intensamente minhas indignações e moldar um espírito mais forte.

Agora, três décadas já se passaram e eu ainda me sinto um menino.
Não, não no sentido bom da coisa. Me sinto um menino porque ainda me pego sonhando com um futuro em que serei muito mais realizado, sucedido e satisfeito. A expectativa de que algo surpreendente e interessante ainda vai acontecer não se atenuou em nenhum instante de minha existência. Uma permanente perspectiva de que ainda vou me tornar aquilo que vou ser.
Nem mesmo fisicamente vejo a minha figura como imagino que deveria ser a de um homem. Tenho um aspecto adolescente. Magro, desajeitado, que ri fácil mas não sabe por quê.
A experiência que eu deveria ter acumulado não me ajudou a ter nenhum método, ou pelo menos a mais vaga noção, de quando e como fazer a coisa certa.
Ainda não conheço os atalhos para viver a vida com mais sabedoria. É tudo tão obscuro quanto sempre foi.

Apenas minha incondicional paixão por jogar futebol atravessou intacta todas as fases da minha vida.

Meu grande sonho é escrever um livro, um dia. Um texto com intensidade, que exponha de forma crua e densa todos os tormentos, esperanças, dúvidas e lucidez que lutam dentro de mim e que seriam capazes tanto de me libertar como de me expor ao ridículo. Desejo um texto com autenticidade, com força. Almejo a capacidade de escrever com as entranhas, como um O Estrangeiro, Cem Anos de Solidão, Nada de Novo no Front, O Processo ou O Animal Agonizante.
Mas esse é um desejo que custaria a realizar-se e temo que eu não teria capacidade de encontrar o caminho para uma escrita de tal envergadura. A imensa probabilidade de que tal façanha nunca se concretize me assusta e faz sentir-me pequeno.

Em contrapartida, ironicamente, às vezes tenho a impressão que já vivi tantas coisas que, em alguns dias, é possível enxergar uma realidade nítida entre tantas verdades esmaecidas. Nuances suaves, mas marcantes, revelam que é tudo um transe sem muito sentido, que haveria uma forma bem mais interessante e inteligente de tocar as coisas em frente... e, ao mesmo tempo, é apenas uma impressão. Qualquer coisa que você possa dizer não é nada que qualquer um já não tenha percebido. A vida é fria e errática porque é simplesmente inevitável que o mundo siga seu curso, de uma maneira ou de outra.

A ilusão é falsa o suficiente pra ninguém levar tão a sério quando alguém aponta, mas verdadeira o bastante pra convencer o olhar distraído.
No fim, a gente se conforma. E só.

No curso do direito estuda-se essa figura abstrata: o homem médio. As regras da sociedade devem ser interpretadas através da perspectiva que o homem médio as perceberia em seu modo de vida. Deve-se observar como, no mais das vezes, a grande massa reiteradamente se comporta para identificar a reprovabilidade de uma conduta. Mas ninguém sabe dizer objetivamente quem é o homem médio.
O homem médio é, pois, um indivíduo economicamente ativo e socialmente inserido, que enfrenta certas dificuldades mas está razoavelmente afastado do desespero. Ele estuda por anos, procura um bom trabalho, economiza pra comprar um carro e deseja ter uma moradia própria. O homem médio se preocupa com a estabilidade financeira e se bota a planejar anos a fio buscando melhorar sua situação em um futuro próximo que insiste em não chegar. Ele aprecia manifestações artísticas e culturais populares, algumas poucas de arrojo intelectual e tem uma vaga noção de produções alternativas que despontam em algum movimento social que se destaca sazonalmente. Planeja as férias, viaja a intervalos regulares, come comida industrializada intercalada com breves períodos de preocupação em ter uma dieta mais saudável. Questiona os valores morais da sociedade em que vive, em que pese os tenha absorvido e os reproduza com frequência suficiente pra tornar seu discurso ocasionalmente contraditório às suas ações. Frequentemente se sente julgado levianamente e, portanto, julga os outros vigorosamente.
Todo esse conjunto de resignações causam pequenas crises filosóficas que perturbam o homem médio de tempos em tempos, deixando-o reflexivo e consternado com a situação humana. Estas reflexões se somam mas não se aprofundam e ele segue em frente sem encontrar soluções satisfatórias, com uma cabeça cada vez mais cheia de pensamentos e conflitos e nenhum escape.
O despertador tocou. A sinaleira abriu. O expediente encerrou.
Pois bem, a identidade se revela: sou eu. Eu sou o homem médio. Eu e meu pacato cotidiano.
Deveria ser transportado para uma sala de aula e estudado por universitários curiosos, ávidos por entender como o homem médio faz suas bagaçadas por aí e consegue acreditar que está tudo certo, tudo bem. Como ele consegue se perceber dentro de um sistema que lhe condiciona, constrange, extenua e revolta e, ainda assim, continua obedecendo e sustentando entre resmungos inconformados?
Infelizmente, não sei, pessoal.
O homem médio não sabe. Curiosamente essa é, também, uma característica marcante do homem médio.

As condições em que cresci e me criei me permitiram ser uma pessoa comum, preocupada com uma rotina regular, sem grandes sobressaltos, sem dramas perturbadores, sem grandes privações. E esse é exatamente o motivo do meu mais estúpido transtorno. Como não ficar indignado de perceber que seus maiores dilemas são típicos de qualquer imbecil?

Onde encontrar espaço para genialidade nisso? Como a criatividade germinaria num cotidiano assim? Como esperar encontrar uma abordagem mais interessante da vida se as mesmas condições se assentam cada vez mais firmes? Como ter uma alma? Como ter um coração pulsante de sangue quente? Como expelir a mais ácida, honesta, vívida e encantadora sinceridade? Como aliviar as dores de ser inexpressivo? Como saber qualquer coisa entre tantas contradições?

Escrevi esse texto porque encontrei, em um caderno, rabiscos de quando era mais jovem. Não é um texto elaborado, mas me surpreendeu que também não tenha sido excessivamente ingênuo. Apesar da perspectiva adolescente, revela uma inquietação até bem pensada:

Com muitos e tímidos passos acumulei histórias. A cada novo dia, nos permitimos sonhar com tantas novas possibilidades no destino que não espanta que todo ser humano se veja pressionado a ter a melhor jornada em todos os instantes. Confiamos em nossa espontaneidade e subestimamos os desapontamentos, o que torna as vontades, opiniões e ações muito mais rigorosas e definitivas, e os erros, fracassos e equívocos muito mais severos e indigestos. Saber que as marcas do passado não mudarão nunca mais e que a chance de buscar uma vez mais a felicidade está sempre no momento à frente ora nos move, ora paralisa; ora nos estimula, ora nos cansa. A cada segundo, algo se torna nossa história, poemas, desenhos ou rabiscos indignados.
Viver é caminhar sobre uma imensa linha em branco.

Que se dane.
Afinal, meus prazeres e meus transtornos serão apenas meus. Apagarei a chama de mais um ano, e a dor e alegria dessa passagem se encerrarão por trás de meus olhos.
Chega de palavras.
Apenas sinta o acelerar de meu coração.
Já tenho trinta anos.

Então? Que tal estou?

*Texto originalmente escrito em 20/03/2016

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