Pensamento edificante do dia:

Pensamento edificante do dia: "Inventar as palavras foi o jogo mais desafiador que a humanidade já concebeu, onde o objetivo é tentar dizer, com as peças disponíveis, o que gostaríamos que as outras pessoas soubessem"

sábado, 12 de agosto de 2023

Papel amarelado de palavras desgastadas

Sonhei que você havia morrido. Acho que nunca me senti tão horrorizado em toda minha vida. O ar se cimentou em minha garganta e, mesmo quando acordei num fôlego e lentamente percebi que tudo havia sido um sonho, ainda havia uma sombra em meu alívio.
Confesso que, algumas vezes, imaginei como seria a vida se você morresse. Todos os momentos que você me visse sozinho seria capaz de dizer exatamente quais foram as vezes em que pensei nisso. Meus olhos marejam e não sou capaz de me livrar das minhas ideias sem sacudir a cabeça e bufar. Meu rosto se desfigura, manchado por um gosto salobro.
Cada uma das vezes que esse pensamento me ocorreu, mesmo as de breve passagem, me deu vontade de que uma coincidência fizesse você aparecer. Eu gostaria de estar vulnerável nas vezes que falei com você, para poder ser espontâneo e esquecer de levantar a defesa das aparências. Porque é isso que aconteceria se eu conseguisse te dizer o que você significa para mim. Eu ficaria vulnerável. Indefeso de uma maneira constrangedora.
Mas é difícil traduzir algo assim em palavras. Por isso escrevo esses poemas esculhambados, esses "eu te amo" protocolares que parecem anúncio de número de bingo. Apesar de não faltar honestidade, falta essência. Dizer de maneira limpa o que você causa em mim seria abrir e expor a membrana mais sensível, em que qualquer manuseio equivocado me despedaçaria. E é dolorido parecer inteiro aos olhos de quem te vê de fora mas estar despedaçado. Dolorido a ponto de se encolher na cama, de te fazer deixar de entender por que os dias nascem, de ter uma imaginação febril te torturando com os arrependimentos mais insuportáveis, é dizer coisas que não começam e nem terminam e te tornam incompreendido, é transformar-se em um estorvo que ninguém é capaz de se livrar. Então me escondo na minha cautela, pois é preciso dizer apenas para a pessoa que temos certeza que é aquela que se dedica a nos cuidar. Uma certeza que nunca vem.
Se fosse possível dizer de verdade o que preciso dizer, eu teria de conseguir mostrar como cada gesto seria exaustivo na sua ausência, como seria visível nos meus olhos a espiral turva em meus pensamentos e como eu nunca mais daria um sorriso verdadeiro. Teria de dizer o quanto eu lutaria para dar sentido a cada pequena palavra que eu dissesse pra falar sobre você e, mesmo assim, nenhuma frase teria mais nenhum significado, e isso me faria chorar.

Considero ainda que, mesmo imaginando, não é possível conceber a real dimensão de como seria se, de fato, acontecesse. Quando meus pelos se arrepiam e me vejo enredado nestes pensamentos, sei que isso não é nada mais que uma fração do que se passaria comigo se, um dia, você não estivesse mais aqui. Em meu pesadelo, eu não consigo te salvar. Fico torcendo para que você corra algum perigo e eu possa ser a pessoa que te resgata, cometendo bravuras por você, mas tudo acontece e eu fico impotente. Minhas pernas se movem com lentidão e algo me impede de esconder o rosto para não enxergar. Não consigo entender tudo o que se passa, mas sei que você está sumindo e eu não posso remover seu tormento e nem aliviar seu medo. Não posso te aconchegar e te confortar. Fico imobilizado em gestos pesados, atolado em uma sensação de ser tudo minha culpa. Meu desejo besta de ser heroico e curar as suas dores te pôs em um perigo desnecessário, e torna-se apenas um grito rouco, como uma navalha, de quem não tem nada a fazer além de aceitar.

Não quero que você se sinta responsável por esses meus pesadelos. Sei que coisas assim não devem ser ditas nunca a alguém que infla os pulmões no tráfego da cidade, que cerra os olhos contra as cores que o sol espalha pelas coisas, que se veste todas as manhãs para despir-se novamente todas as noites. Então, eu nunca contei as coisas que te diria se você morresse, porque você ainda vive. Não conto porque te assustariam. Eu sei que assustariam porque me assustam.
Pensar em você me faz perceber as coisas que dão sentido para minha vida, e qualquer coisa que dê sentido para uma força tão avassaladora quanto o frágil fio que mantém alguém vivo só pode ser assustador.

Sonhei, portanto, que você havia morrido, e foi tão real que acordei como se eu mesmo não existisse mais. Foi pouco a pouco que lembrei como eu devia abrir os olhos, mover um braço e depois outro, me erguer sobre as pernas e seguir desempenhando os movimentos que representam que estou vivo. Até que me distraio e logo estou fazendo tudo automaticamente, sem lembrar de pensar em você. Essas são as horas que passam voando e não deixam nenhuma marca. Horas em que, se alguém me parasse e falasse comigo, sequer perceberia o quanto eu me importo. Eu mesmo acabo agindo como se tudo tivesse ficado para trás. É só quando sento olhando para o fundo da xícara em minhas mãos, marcada de frisos úmidos do café que terminei de tomar, é que volto a ser eu mesmo e lembro como eu nunca consigo dizer o que gostaria que você soubesse.

Até comecei a escrever uma carta, mas errei e tive de começar de novo, e a nova carta ficou manchada porque apoio a mão por cima da linha de tinta ainda fresca que acabei de escrever, e acabei de me arrepender de ter escrito com tanta nudez, com medo de me entregar tão completamente em suas mãos. Depois fui postar mas eu nunca vou nos Correios. Então o papel amarelou e as palavras se apagaram.

Foi quando eu quis que uma coincidência fizesse você aparecer.

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